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A PRODUÇÃO DA SECADI E A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR: ENTRE REMINISCÊNCIAS E AUSÊNCIAS
Terezinha Maria Schuchter, Janete Magalhães Carvalho

Última alteração: 2017-01-31

Resumo


Introdução

Em reposta ao movimento político e teórico a favor das lutas pelas políticas inclusivas, foi criada em 2004, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad). Hoje essa secretaria é denominada Secadi, pelo acréscimo do termo inclusão. Em pesquisa realizada mapeamos toda produção dessa secretaria desde a criação até 2015. É importante destacar que apesar de avanços tanto no campo político quanto teórico no trato às diferenças, percebe-se ainda uma grande dificuldade da/na escola, em incluir os temas ligados às diferenças como currículo. Na maioria das vezes, esses temas são trabalhados como datas comemorativas, eventos, semanas culturais, projetos extracurriculares, e outros.

Entretanto, alguns temas colocados na Lei nº 9394/1996, como direitos humanos, direitos e prevenção de todas as formas de violência contra a criança e ao adolescente, e outros colocados nas diretrizes curriculares do Conselho Nacional de Educação nº 04 e 07 de 2010 respectivamente, como gênero, sexualidade, ética, educação ambiental, devem ser tratados como temas transversais. Ainda, de forma mais incisiva, de acordo com a Lei nº 11.645/2008 o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira são conteúdos programáticos obrigatórios.

Ressaltamos ainda que nesse momento em que há um processo instaurado de elaboração de uma base nacional comum curricular (BNCC), se faz necessário observar em que medida e de que forma as temáticas acerca da diferença foram contempladas nessa base. Assim em um primeiro momento queremos evidenciar a produção da Secadi por temáticas e posteriormente, discutir as proposições da BNCC no que tange à visibilização ou ocultamento de questões e temas presentes nos documentos da Secadi.

A produção da Secadi no período de 2004 a 2015[1]: a desocultação de temas e questões relevantes ao campo do currículo escolar

Do ano de 2004 a 2015 foram publicados ao todo 153 documentos no formato de livros e revistas dentro da seguinte proporção: educação especial (75); educação de jovens e adultos (27); educação do campo (3); educação étnico racial (30); gênero e sexualidade (11); direitos humanos (2); educação e diversidade (5).

Em toda a produção da Secadi e principalmente nos documentos sobre gênero e sexualidade é muito presente as expressões identidade e diversidade. E os termos diversidade e diferença são utilizados nos documentos de forma indistinta. Entretanto, compreendemos que os termos não podem ser utilizados de forma indiscriminada por se tratar de uma questão conceitual ligada às referências teóricas que são assumidas – no caso multiculturalismo conservador ou emancipatório.

As implicações das análises ligadas ao multiculturalismo conservador se revelam pelo tratamento da diferença através da ilusão do tratamento igualitário, ou da consideração de aspectos deficitários e problemáticos. Dessa perspectiva é que originam as políticas compensatórias, afirmativas, de reparação e de tolerância. A diferença é concebida a partir da ideia da diversidade, e analisada sempre a partir de uma forma dada, uma identidade pré-estabelecida. Estas perspectivas aparecem nos documentos analisados – principalmente no que concerne à questão da identidade, como dotada de uma essência fixa e imutável.

Também não foi encontrado um documento que tratasse especificamente do tema pobreza. E seria necessária uma produção voltada para essa temática? Compreendemos que sim, porque há professores que sequer reconhecem a existência de alunos pobres e extremamente pobres nas salas de aula – apesar de se constituírem uma maioria nas escolas públicas. “Ao desconsiderar-se a materialidade da vida humana, do direito à dignidade e às condições mínimas de sobrevivência, as histórias desses grupos também são negligenciadas” (CÓSSIO, 2014, p. 1580).

Outra questão que ainda merece destaque é o fato de que o discurso em torno da necessidade da inclusão e da defesa da “Educação para Todos” decorre do reconhecimento de práticas que ainda segregam e excluem, ou seja, as lutas em torno da garantia do direito à educação podem não ter sido suficientemente capazes de garantir uma escola de/para/com todos.

A diversidade ou a diferença na base nacional comum curricular: alguém se lembrou da cultura, do gênero, sexualidade, história e cultura africana e indígena...?

Analisando o documento da BNCC, entre os objetivos gerais ligados à área de conhecimento ou a etapas da educação básica e objetivos específicos ligados aos componentes curriculares identificamos 96 objetivos que tratam direta ou indiretamente de temas ligados à diferenças e diversidade[2], com destaque às questões ligadas a etnia (africana e indígena), preconceito, desigualdade, direitos humanos.

Desses 96 objetivos, sete podem ser classificados como objetivos gerais em relação às áreas de conhecimento e componentes curriculares ou às etapas da educação básica. Na educação infantil tem apenas um objetivo que está relacionado com a questão da diferença de forma bem geral que é: “apreciar os costumes e as manifestações culturais do seu contexto e de outros” (p. 69). E dos 88 objetivos restantes relacionados à aprendizagem e ao desenvolvimento, observamos em alguns componentes curriculares, uma ênfase maior e em outros uma total ausência em relação aos temas ligados à diferença.

Chama-nos atenção o componente curricular educação física que concentra quase cinquenta por cento dos objetivos (42 objetivos), seguido de história com 11 objetivos, geografia e sociologia com 9 objetivos cada componente, ensino religioso com 7 objetivos, artes com 5 objetivos, ciências naturais com 4 objetivos. Com exceção do componente curricular educação física, podemos inferir que o número de objetivos distribuídos pelos componentes curriculares é ínfimo, diante das questões que devem ser discutidas com os alunos que envolvem sexualidade, gênero, direitos humanos e outros. Sexualidade aparece apenas em ciências naturais (ligado à ideia da reprodução) e em arte através do seguinte objetivo: “refletir sobre as experiências teatrais desenvolvidas em aula de modo a problematizar as questões de gênero, corpo e sexualidade” (p. 399).

O componente língua portuguesa aparece apenas com um objetivo no 4º ano do ensino fundamental ligado à questão dos direitos humanos. Há uma total ausência de objetivos ligados às diferenças na língua estrangeira, na matemática (ensino fundamental e médio) e na filosofia, química e biologia (ensino médio).

E entre os objetivos, a grande ênfase está na questão da educação das relações étnico raciais africana e indígena, o que pode ser explicado pela obrigatoriedade da inclusão da história e cultura africana e indígena como currículo prevista na Lei nº 11.645/2008.

E diante de tantos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento distribuídos entre os componentes curriculares, ainda nos resta algumas interrogações: “a parte diversificada” prevista na Lei nº 9394/96 será efetivamente garantida nos currículos? Terão os sistemas de ensino, condições de garantir o trabalho com a parte diversificada?

Considerações finais

A produção da Secadi – considerando as questões que precisam ser problematizadas – foi e ainda é fundamental para desinvibilizar questões e temas que precisam ser curricularizados, isto é, constituírem-se como parte, “conteúdos programáticos” (BRASIL, 2008) e não temas especiais ou temas integradores, pois dessa forma continuarão como algo externo ao currículo.

Os temas ligados às diferenças devem superar a concepção de currículo de vitrine e ideia de “aceitação e celebração das diferenças”. E ao se trabalhar na perspectiva de elaboração de um “padrão curricular nacional, ao eleger os conteúdos escolares, outros conteúdos poderão ser esquecidos e, portanto, muitos saberes poderão ser silenciados” (CÓSSIO, 2014, p. 1581). E essa história já é conhecida, ao se tratar de um currículo nacional, o que prevalecerá? Prevalecerá o que é reconhecido como o saber sistematizado e legitimado pela humanidade, que sempre foi representado pelo paradigma monocultural de currículo. Ao analisar a BNCC, observamos que os temas relativos às diferenças configuram-se em alguns casos como reminiscências e em grande medida e proporção em ausências.

Dessa forma, entendemos que diante do conservadorismo, do pragmatismo, do projeto de nação embutido nas políticas públicas precisamos defender um currículo intercultural, multicultural, multiétnico, um currículo construído e pautado nas diferenças.

Enquanto o velho insistir em não morrer, o novo não pode nascer. O velho que traz o ranço reacionário, conservador, intransigente e fascista insiste em querer viver.  Inundemos tudo isso com a vida. Uma vida forte, potente, latente, transbordante, inventiva. A vida que transborda nas escolas. A vida constituída pelas diferenças.

 

Referências

BRASIL. Lei nº 9.394/96 20 de dezembros de 1996.  Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Senado Federal, 1996.

______. Lei nº 11.645 de 10 de março de 2008. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena". Brasília: Senado Federal, 2003.

______. Resolução n° 04/2010 que fixa as diretrizes curriculares da educação básica. Brasília, 2010.

______. Resolução n° 07/2010 que fixa as diretrizes curriculares do ensino fundamental de nove anos. Brasília, 2010.

______. Base nacional comum curricular: versão preliminar – segunda versão revista. Brasília: 2016.

CÓSSIO, M. F. Base comum nacional: uma discussão para além do currículo. In Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 12, n. 03 p. 1570 - 1590 out./dez. 2014.

 


[1] Além do material citado nesse artigo foi elaborado uma listagem de leis, decretos, pareceres e resoluções sobre as temáticas. A síntese e a referência completa dos documentos estão disponíveis em: https://drive.google.com/open?id=0B5TC1R9WAYybQ3lzSVV1NllRdEE

 

[2] A BNCC também não faz distinção entre diversidade e diferença. Os termos aparecem de forma indistinta no decorrer do texto.